Congresso inimigo do povo ou Congresso da devastação?
Como o Parlamento brasileiro vem minando políticas sociais e ambientais em benefício das elites

O Brasil vive um momento decisivo em sua trajetória democrática. De um lado, um Executivo que tenta manter a estabilidade institucional e promover políticas públicas voltadas à inclusão social e à proteção ambiental. De outro, um Congresso cada vez mais capturado por interesses econômicos e políticos que favorecem elites econômicas, ruralistas e setores ligados à mineração, agronegócio e grandes corporações. No meio desse embate, a população mais vulnerável — indígenas, quilombolas, ribeirinhos, trabalhadores urbanos — vê seus direitos diluídos por decisões tomadas a portas fechadas em Brasília.
A mais recente ilustração desse cenário foi o episódio lamentável ocorrido na Câmara dos Deputados nesta quinta-feira (17), durante a votação de um projeto de lei que flexibiliza as regras para licenciamento ambiental. A proposta, aprovada pela base ruralista e conservadora da Casa, representa um grave retrocesso para a legislação ambiental brasileira. Ela abre brechas para que empreendimentos de alto impacto sejam liberados sem os devidos estudos ambientais e sem a consulta prévia a comunidades afetadas, como determina a Convenção 169 da OIT.
Durante o debate, o deputado Kim Kataguiri (União-SP), defensor do projeto, sugeriu que parlamentares que se opunham à medida o faziam por “interesses financeiros”. A deputada indígena Célia Xakriabá (PSOL-MG), uma das principais vozes em defesa dos povos originários no Congresso, reagiu com veemência: “O senhor é estrangeiro aqui, tinha de pedir perdão para os povos indígenas”. A resposta de Kataguiri, que ironizou o cocar da parlamentar chamando-a de “cosplay de pavão”, foi rapidamente apoiada por outro deputado, Rodolfo Nogueira (PL-MS), que se referiu a Xakriabá como “pavão misterioso”.
O episódio é sintomático de um Congresso cada vez mais hostil à diversidade e à democracia. O fato de uma deputada indígena eleita estar sendo tratada com escárnio e racismo em plena sessão plenária — e ainda silenciada pelo presidente da Casa — escancara o tipo de violência simbólica que permeia as decisões legislativas no Brasil. Mais do que uma ofensa pessoal, trata-se de um sintoma de um projeto político mais amplo: a exclusão deliberada de vozes dissidentes e a desconstrução de marcos civilizatórios.
Não é um caso isolado. O Congresso tem atuado como uma verdadeira máquina de desmonte. Desde o início do ano, propostas como o marco temporal para demarcação de terras indígenas, a anistia a desmatadores e a destruição de instrumentos de fiscalização ambiental avançaram com apoio massivo da bancada ruralista. Simultaneamente, direitos trabalhistas, investimentos em saúde e educação e políticas de redistribuição de renda enfrentam cortes, atrasos ou boicotes orçamentários.
Em paralelo, o tensionamento entre os Poderes — Legislativo, Executivo e Judiciário — cresce. Parte do Congresso tenta se impor como um “superpoder”, muitas vezes atropelando decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) ou engessando iniciativas do governo federal. A proliferação de emendas do relator, o orçamento secreto e os conchavos para manter privilégios escancaram um projeto de poder que se afasta dos interesses da maioria da população.
Neste contexto, o Parlamento se torna, para muitos, o verdadeiro “inimigo do povo”. Ou pior: o Congresso da devastação, que legisla contra o meio ambiente, contra os povos originários e contra os mais pobres. Um Congresso que, ao invés de representar a sociedade, a subjuga aos interesses de poucos.
A resistência, contudo, ainda pulsa. Deputados e deputadas comprometidos com os direitos humanos, movimentos sociais, organizações ambientais e a sociedade civil organizada seguem denunciando e enfrentando os retrocessos. A cena de Célia Xakriabá, firme diante de insultos, é simbólica: apesar da tentativa de silenciamento, há vozes que não serão caladas.
A pergunta que resta é: até quando a democracia brasileira resistirá ao cerco promovido por um Congresso que, cada vez mais, governa para os ricos e legisla contra o povo?
Por: @cezinha Marques – Jornalista premiado três vezes com o prêmio Jânio Lopo de jornalismo. É cronista do site Bahiapress e curador de um canal no YouTube: Next Trip – @jornalistanakombi
É fotógrafo, mergulhador, poeta e nas horas vagas viaja pelo mundo.